Se você esteve na Terra nos últimos anos, deve ter visto, lido ou ouvido algo sobre inteligência artificial. Essa tecnologia já está presente em importantes áreas da nossa vida, como na medicina, no entretenimento, nos negócios, na educação e na arte, prometendo uma grande revolução tecnológica. Mas, como em toda revolução, alguns desafios surgem, cercados por danos iminentes, e um deles está relacionado aos direitos autorais das criações da inteligência artificial.
Passei um bom tempo estudando e tentando entender todo esse rolo, e agora consegui reunir neste artigo os principais pontos e contrapontos dessa longa discussão — e bota longa nisso.
Antes, vamos entender o que é a inteligência artificial e como ela funciona.
O que é uma inteligência artificial?
A inteligência artificial é um ramo da ciência da computação responsável pelo desenvolvimento de sistemas capazes de imitar a inteligência humana. Esses sistemas conseguem identificar vozes e imagens, aprender, tomar decisões e resolver problemas complexos.
Alguns tipos de inteligência artificial já são bastante conhecidos por nós, como as assistentes virtuais Siri, Alexa, Google Assistente, o reconhecimento facial em sistemas de segurança e até mesmo a ferramenta usada pela Netflix para personalizar seu catálogo com base nas preferências de cada usuário.
Também já escrevi sobre o aplicativo Replika, uma inteligência artificial que se comunica através de um chat de forma tão realista que já aconteceu até casamento entre uma mulher e seu “noivo virtual”.
Mas neste ano de 2023, tivemos a popularização da utilização do ChatGPT, uma inteligência artificial em forma de chat. Nele, você pode fazer perguntas ou até mesmo pedir que ele crie textos, faça resumos, correções e outras tarefas.
Uma versão do ChatGPT passou a ser disponibilizada gratuitamente na internet, e as pessoas passaram a utilizá-la para todo tipo de coisa — desde que seja possível através de um chat.
O ChatGPT foi a primeira inteligência artificial de chat a se tornar popular, mas outras estão ganhando popularidade com o mesmo objetivo, como o Google Bard, por exemplo.
Saindo do mundo dos chats, temos um tipo de inteligência artificial que cria imagens com base em comandos escritos, como o Midjourney, que é um dos mais conhecidos no momento.
Existem várias opções de inteligência artificial pelo mundo. Citei aqui algumas principais que ainda serão mencionadas neste artigo.
Essas ferramentas que utilizam inteligência artificial (IA) estão revolucionando a maneira como realizamos várias atividades.
No mundo dos negócios, já existem centenas de possibilidades de utilizar a IA para poupar tempo e ter análises com mais agilidade e assertividade. Na medicina, diagnósticos e resolução de problemas estão sendo concluídos em menos tempo.
Ao mesmo tempo em que esse acelerado avanço tecnológico parece ser uma maravilha — porque é —, você já deve ter percebido também os inúmeros problemas que o acompanham.
Mas neste artigo, vou focar em apenas um deles, como prometi lá no início.
Uma grande questão está se derramando sobre toda essa evolução: de quem é o direito autoral das obras criadas pela inteligência artificial?
Afinal, de quem é o direito autoral?
Sento-me na minha confortável cadeira de escritório, ligo o meu computador, acesso o site da OpenAI, que é a empresa responsável pelo ChatGPT, informo os dados para conectar-me a uma conta, e a página de comando aparece na tela do meu computador.
No local destinado a escrever o comando, eu digito:
“Crie uma história de suspense em 30 linhas com tom sombrio e dramático, baseada nas seguintes informações: um homem e uma mulher estão tentando ter um filho, mas descobrem que a mulher não pode engravidar. Uma amiga do casal se oferece para ser a barriga de aluguel e o casal aceita, mas o bebê nasce com uma anomalia genética e uma inesperada complicação no parto resulta na morte da mulher. A família da mulher que morreu quer que o casal seja punido pela morte dela e lutam pela guarda da criança. Ao longo dos acontecimentos, a criança começa a demostrar um comportamento estranho e assustador, que deve ser resultado da anomalia genética.”
(Não experimente esse comando em casa, certamente ficará uma porcaria)
Assim que termino de digitar o comando, pressiono o botão de envio e aguardo, testemunhando uma história que se desenrola diante dos meus olhos. Após algumas dezenas de linhas, a narrativa chega ao fim. Faço a leitura, realizo alguns ajustes e decido que está pronta.
De quem é a autoria dessa história?
Minha, por ter tido a ideia inicial e informado os parâmetros para o enredo?
Da inteligência artificial, por ter desenvolvido a maior parte da história baseando-se nas poucas linhas que informei?
Da empresa OpenAI, que desenvolveu a ferramenta ChatGPT, previamente treinada e abastecida com informações suficientes para obedecer ao meu comando?
Ou ainda, dos autores das informações que foram utilizadas para treinamento da inteligência artificial, afinal, esse sistema aprende a escrever lendo textos de outros autores.
Tem defesa para todos os lados, mas a realidade é que ninguém ainda está totalmente preparado para lidar com a inteligência artificial.
Então, vamos por partes.
O mundo ainda não está preparado para a inteligência artificial
Decisões envolvendo criações artísticas por inteligência artificial estão pipocando pelo mundo. Cada país está se virando para lidar com o avanço acelerado dessa tecnologia.
A seguir, vou te mostrar alguns casos que encontrei.
Obra ilustrada por IA é indicada ao Prêmio Jabuti no Brasil e artistas se revoltam
Recentemente, uma polêmica estourou no meio literário e de ilustrações.
Ao serem anunciados os finalistas do Prêmio Jabuti, a maior honraria literária no Brasil, o livro “Frankenstein” de Mary Shelley foi indicado na categoria de melhor ilustração.
O problema é que a ilustração do livro em questão foi realizada com o auxilio da inteligência artificial Midjourney.
O Midjourney funciona assim: você informa um comando, por exemplo, “Cachorro com uma bola de futebol na cabeça”, e o programa cria quatro opções de imagens contendo um cachorro com uma bola de futebol na cabeça.
É claro que um usuário que entende de ilustrações tem condições de descrever um comando mais especifico, indicando cores, composição, posição de elementos etc. Assim, a inteligência artificial pode construir imagens com maior qualidade e mais próximas do que se deseja.
Nos créditos do livro “Frankenstein”, o nome do ilustrador Vicente Pessôa foi creditado juntamente com a ferramenta Midjourney, mas na inscrição do prêmio, apenas o nome do ilustrador foi informado.
Em entrevista, ele disse que não havia um local onde informar a utilização da ferramenta, mas que isso nunca foi segredo, pois na época do lançamento da obra essa informação foi amplamente divulgada como sendo o primeiro livro do mundo a ter suas ilustrações criadas por meio de uma inteligência artificial.
Quando a informação dessa indicação se tornou pública, aconteceu o maior rebuliço.
Muita gente foi contra e muitos ilustradores que não utilizam a ferramenta se sentiram injustiçados. Afinal, segundo eles, não seria justo competir com um programa que cria imagens sozinha, mesmo que seja por meio de um comando humano.
Por outro lado, os defensores alegaram que o Midjourney é apenas uma ferramenta, assim como o Photoshop ou qualquer outro editor de imagem. Para eles, mesmo que a inteligência artificial crie a imagem, ela ainda precisa de comandos precisos, e é aí que entra a participação do profissional.
Em meio a um tornado de opiniões, a Câmara Brasileira do Livro (CBL), responsável pelo Prêmio Jabuti, decidiu desclassificar a obra, alegando que a utilização de inteligência artificial em obras ainda precisa ser discutida antes de incluí-las em edições futuras do prêmio.
E é claro que essa decisão ocasionou outro tanto de opiniões, reflexões e discussões.
Obra criada por inteligência artificial ganha concurso no Colorado (EUA) e, mais uma vez, causa revolta
Uma obra criada através da inteligência artificial Midjourney consquistou o primeiro lugar numa competição de artes realizada no Colorado nos EUA.
O ilustrador Jason Allen afirmou em entrevista que, por meio da ferramenta, criou centenas de imagens, selecionou as três melhores e, posteriormente, caprichou na edição, utilizando ferramentas comuns aos ilustradores. Portanto, ele afirma que as imagens não foram criadas apenas pela inteligência artificial, mas sim em colaboração com o seu próprio trabalho.
Neste caso, o prêmio foi mantido, mesmo sob protestos dos artistas que se sentiram trapaceados.
Foto feita por macaco viraliza e faz sucesso pelo mundo
Esse caso é bem inusitado e não está relacionado à inteligência artificial, mas também rendeu uma boa discussão sobre a autoria da obra e está servindo de base para algumas discussões relacionadas à IA e direitos autorais.
O fotógrafo David Slater deixou sua máquina fotográfica entre um grupo de macacos em uma reserva de animais na Indonésia. Um dos integrantes do grupo, chamado Naruto, acabou se aproximando da câmera e tirando uma self.
Essa foto acabou ficando famosa e rodando o mundo, o que rendeu uma boa grana para David. E não é para menos, vejam a simpatia do Naruto!
O problema começou quando um grupo de ativistas da P.E.T.A (Pessoas pelo Tratamento Ético dos Animais), entrou com uma ação exigindo o direito de administrar toda a renda obtida através da foto do Naruto, em prol do próprio animal.
Em outras palavras, os ativistas alegaram que o direito autoral da foto deveria ser do animal e, por isso, a renda deveria ser utilizada para o seu bem-estar.
O fotógrafo entrou na briga pelo direito autoral, justificando que antes da selfie feita pelo animal, ele teve todo um trabalho para que a foto acontecesse. Ele afirma ter levado três dias para conquistar a confiança do grupo de macacos, ajustar a iluminação e posicionar sua câmera fotográfica no tripé, deixando-a pronta para um possível disparo. O momento ocorreu quando Naruto se aproximou com curiosidade e apertou o botão.
Por fim, após dois anos de briga judicial, David Slater e os ativistas entraram em um acordo: Slater se comprometeu a doar 25% de toda renda futura obtida através da foto para instituições de caridade da Indonesia dedicadas à proteção de macacos do gênero Macaca Nigra, mesma espécie do Naruto.
Como a inteligência artificial “aprende”?
Para além da discussão sobre “quem criou tal coisa”, discute-se a origem dos dados utilizados pelas inteligências artificias para “aprender” as informações.
Uma inteligência artificial pode aprender de várias maneiras, e eu não vou me aprofundar nas opções, porque não é meu objetivo aqui, e também entraríamos em um assunto mais técnico do que eu gostaria.
Mas a maneira de aprendizado que vem preocupando as pessoas em relação aos direitos autorais é a obtenção de dados através de quem treina a IA. Ou seja, alguém alimenta o programa com milhares de textos e imagens para que a IA crie seus próprios textos e imagens a partir dali. E essa prática tem gerado muita discussão.
Se você é autor de um livro que foi enviado para um programa para que ele treine e auxilie seus usuários utilizando o que aprendeu com seu livro, você, sendo o autor, deveria ser reconhecido?
Ou, se você é o criador da ilustração que está entre as milhares de ilustrações utilizadas pela IA para criar suas próprias, você deveria ser creditado por isso?
Há quem defenda que essa prática é semelhante ao processo de aprendizagem dos seres humanos, afinal, ninguém cria algo sem antes ter se inspirado na obra de alguém.
Essa discussão é longa e cheia de ramificações, como tudo que vimos até aqui. E eu avisei, lá no começo.
Mas… e agora, quem poderá nos defender?
Lutar contra o avanço da inteligência artificial não é uma opção; ele já está acontecendo.
Para mim, para início de conversa, nossa melhor opção é nos inteirarmos do que está acontecendo e entender onde nos encaixamos nisso tudo.
Empregos sumirão, outros surgirão, e outro tanto será transformado, mas não se preocupe, pois não estamos tão à deriva assim.
No Brasil, temos o Projeto de Lei 2.338/2023 que está em tramitação para regulamentar a utilização da inteligência artificial no país.
Recentemente, o Senado Federal criou uma Comissão Interna Temporária sobre Inteligência Artificial para discutir os efeitos dessa tecnologia.
Se você chegou até aqui, já deve ter percebido que temos muito chão ainda pela frente para discutir sobre os efeitos da inteligência artificial.
Ainda não tenho uma opinião estabelecida, além de que nossos direitos devem ser respeitados. Por isso, reuni neste artigo alguns pontos e contrapontos focados no direito autoral das obras artísticas das inteligências artificias, tomando o cuidado para não me perder nas várias ramificações que essa discussão possui.
A certeza que se tem até o momento é de que estamos vivenciando uma revolução tecnológica, e estou bem curiosa para saber onde vamos parar.