Como muitos leitores, eu alimentei o sonho de ter uma grande biblioteca em casa. No entanto, chegou o dia em que encarei aqueles livros enfileirados, cobertos por poeira e manchas amareladas, e pensei: e se eu enviar meus livros para doação?
Mas, o que me levou a tomar essa decisão?
Eu me fiz essa pergunta algumas vezes, antes mesmo de concluir a doação, para entender se era um motivo genuíno e se não me arrependeria depois.
A questão é que não houve um momento específico em que essa ideia surgiu; foi uma sucessão de acontecimentos que me levou até ela.
O primeiro deles foi começar a escrever meus próprios livros.
O que mais se quer, quando se escreve livros?
Todo escritor iniciante sonha em ter sua escrita remunerada, mas, para além do dinheiro, quem escreve quer, e muito, ser lido.
Não tem a menor graça escrever se ninguém vai ler, a menos que o objetivo seja esse. Antes de começar a divulgar o que eu, timidamente, escreveria no meu Instagram, o nervosismo me dominava só de pensar que várias pessoas estariam lendo e julgando cada palavrinha.
Aí veio o primeiro textinho e bum, ninguém leu. Foi a partir daí que eu comecei a valorizar os poucos que dedicavam seu precioso tempo para ler o que eu estava escrevendo — eu entrei no jogo.
A necessidade e a dificuldade de ser lida foram me fazendo refletir sobre as centenas de livros que eu estava “segurando” na minha casa e que dificilmente seriam lidos por mais alguém — e talvez nem tivessem sido lidos por mim ainda.
Essa foi minha primeira reflexão sobre guardar tantos livros em casa, mas eu ainda estava longe de mudar essa realidade. Afinal, precisava sustentar meu estereótipo de leitora voraz que precisa ter uma estante de livros em casa.
Até que grandes mudanças surgiram na minha vida.
Acúmulo de pertences; o que enviar para doação?
No começo de 2022, meu marido e eu decidimos realizar nosso sonho de nos tornarmos nômades digitais. Passamos um ano nos organizando e planejando para que, no final daquele ano, pudéssemos iniciar nossa jornada.
Com isso, veio o espanto ao perceber quanta coisa tínhamos acumulado no pouco tempo em que estávamos morando juntos.
Passamos por um difícil e cansativo exercício de desapego. Algumas coisas foram descartadas, outras foram doadas, e pouquíssimas ficaram guardadas esperando nosso retorno — que ainda não sabíamos quando seria.
E havia a minha estante de livros. Nunca soube a quantidade exata de livros que era acomodada ali, mas sei que eram pouco mais de 200 exemplares; e a estante, que não era muito grande, já estava ficando sem espaço.
Naquele momento, com meu senso de minimalismo mais aflorado do que nunca, aprofundei minhas reflexões sobre a necessidade de ter tantos livros acumulados em casa.
Impulsionada pelo ritmo de desapego que já havia adquirido após me desfazer de muitas coisas, decidi que doaria os livros que já havia lido e que não tinham chance de serem relidos, além dos livros que não havia lido por não fazerem mais parte do meu gosto literário atual — livros de quando eu era adolescente; bota tempo aí, hein!
E assim, sem dó, encaixotei mais de 100 livros, torcendo para não me arrepender depois.
O mundo depois do Kindle
Depois dos livros serem doados e algumas pessoas ficarem chocadas, veio o tão sonhado primeiro destino como nômade digital.
Levei comigo cerca de 20 livros que planejava ler nos próximos meses. Algumas dezenas de livros que não foram doados, seja porque eu ainda pretendia lê-los ou por terem um valor sentimental muito forte, deixei guardados na casa da minha mãe, aguardando meu retorno.
Dos 20 livros que levei comigo, li metade e decidi deixá-los pelo caminho. Geralmente, os deixava com um bilhetinho no local onde eu tinha me hospedado para o próximo hóspede ou até mesmo para o proprietário do local. O restante que eu ainda não havia lido, deixei na casa da minha mãe quando estive de volta por um curto período, para reduzir espaço no carro.
Assim, acabei ficando apenas com meu Kindle e, a partir daí, nossa relação se estreitou.
Desde que comecei a ler e-books no Kindle, minha preferência por esse formato de livro aumentou cada vez mais, mas ainda estava presa à ideia de que todo bom leitor deve possuir uma grande estante de livros em casa. Por isso, demorei a considerar a ideia de possuir mais livros no formato digital do que impresso.
Entretanto, a necessidade de ter espaço e praticidade nas nossas mudanças de endereço pelo Brasil me deu um empurrãozinho na direção em que já estava caminhando.
Hoje, só compro livros impressos se houver uma razão específica para isso. Tenho livros, e provavelmente comprarei mais, de pessoas que conheço e gostaria de guardar como recordação, livros autografados e exemplares que me marcaram e possuem edições especiais; além de livros de estudo, pois gosto de marcar, rabiscar e reler várias e várias vezes.
Se meu interesse for “apenas” pela leitura, não hesito em comprar a versão digital ou até mesmo pegar emprestado em bibliotecas online.
Tá, mas e aí? Uma questão de perspectivas e objetivos
Meu objetivo ao compartilhar essa experiência não é uma tentativa de incentivá-lo a fazer o mesmo. A maneira como lemos livros é bastante pessoal e funciona de formas diferentes para cada leitor.
Também sabemos que nem sempre a versão digital de um livro compensa financeiramente mais do que a versão impressa. Nesse caso, reflito sobre o que vale mais a pena: comprar o livro impresso e depois ainda ter a chance de permitir que outra pessoa o leia, ou adquirir o e-book pagando quase o mesmo preço e depois deixá-lo sozinho na imensidão do meu Kindle para sempre?
Isso porque meu problema com o acúmulo de livros não lidos está relacionado a um profundo sentimento de injustiça com os livros e com as pessoas que não conseguem acesso a eles.
É como se eu estivesse impedindo os livros de circularem, quando poderiam ser úteis para outra pessoa.
Eu trouxe comigo, por anos, um comportamento estereotipado do leitor acumulador de livros sem nunca parar para refletir sobre esse movimento. Comprava livros porque estavam baratos e me satisfazia ao ver o volume na estante crescer, quando nem metade ainda tinha sido lida.
Perceba que não é uma questão de preferir e-books a livros impressos, pois também é possível acumular muitos livros no Kindle, algo que já fiz, claro. E aqui não se trata de “empacar” livros na minha casa, mas do consumo excessivo e da ansiedade por ter mais livros do que tempo de vida para dar conta de ler tudo.
Essa noção de exagero me ajudou a ter mais foco e objetividade na escolha de livros, e a tranquilidade em saber que leio tudo o que compro.
Para concluir, ao término dessa leitura, espero que desperte em você o desejo de olhar mais para si e entender quais comportamentos tem repetido sem refletir se aquelas ações ainda fazem sentido para você.
Costumo dizer que, de tempos em tempos, devemos revisitar nossos gostos, nossas preferências e nossos costumes, apenas para verificar se ainda é isso mesmo. Muita coisa negativa pode estar vindo dali.